O lado sombrio do legado da rainha Elizabeth II
A morte da rainha Elizabeth II reviveu críticas de longa data sobre o enriquecimento da monarquia, através da violenta colonização de nações africanas, asiáticas e caribenhas.
Embora milhões de pessoas em todo o mundo tenham lamentado a partida da monarca, muitos lembraram a devastação econômica e social ocorridas naqueles lugares.
Jornalistas, comentaristas e acadêmicos foram às redes sociais e outros meios de comunicação para falar sobre os efeitos duradouros da exploração levada a cabo pela monarquia britânica.
Imagem: Shawn Fields/Unsplash
Muitos jovens africanos compartilharam imagens e histórias de seus ascendentes, que enfrentaram um período brutal da história colonial britânica, durante o longo reinado da rainha.
"Não posso chorar", escreveu uma pessoa no Twitter, com uma imagem do que disse ser o "passe de movimento" de sua avó: um documento colonial que impedia viagens gratuitas para quenianos, sob o domínio britânico, no país do leste africano.
Imagem: captura de tela Twitter @Nimmz_Mugo
Outra pessoa escreveu que sua avó costumava contar como as mulheres de sua geração foram espancadas e como seus maridos foram tirados delas, deixando-as sozinhas para sustentar seus filhos, durante os tempos coloniais.
Karen Attiah, uma jornalista afro-americana twittou: “Pessoas negras e pardas em todo o mundo que foram sujeitas a crueldades horrendas e privações econômicas sob o colonialismo britânico podem ter ressentimentos sobre a rainha Elizabeth”.
A professora de História da Universidade de Harvard, Maya Jasanoff, escreveu, no New York Times, que a presença estoica da rainha como um “acessório de estabilidade” sublinhou uma “sólida frente tradicionalista ao longo de décadas de convulsões violentas”.
Jasanoff apontou que, meses depois de Elizabeth II saber da morte de seu pai e tornar-se rainha, as autoridades coloniais britânicas no Quênia reprimiram uma rebelião contra o regime colonial, conhecida como Mau Mau.
A revolta Mau Mau levou ao estabelecimento de um sistema de campos de detenção e ao abuso, tortura, castração e morte de milhares de pessoas. O governo britânico acabou pagando 20 milhões de libras em um processo aberto por sobreviventes quenianos (foto).
O professor da Universidade de Cornell, Mukoma Wa Ngugi, twittou: “Se a rainha tivesse se desculpado pela escravidão, colonialismo e neocolonialismo e instado a c o r o a a oferecer reparações pelas milhões de vidas tiradas em seus nomes, talvez eu fizesse a coisa humana e me sentisse mal. Como queniano, não sinto nada. Esse teatro é um absurdo”.
O professor de estudos pós-coloniais da Universidade de Cambridge, Priyamvada Gopal, disse, no programa de notícias Democracy Now, que a monarquia britânica passou a representar “desigualdade profunda e grave”.
Ela traçou paralelos entre a monarquia britânica e a concentração de poder em outros lugares como os Estados Unidos. Este país, antes de sua independência, foi governado pela monarquia britânica e, agora, efetivamente, coloniza Porto Rico e outras nações insulares.
Imagem: Ana Toledo/Unsplash
Gopal acrescentou: “O poder, o privilégio e a riqueza estão nas mãos de alguns. O resto de nós é convidado a adorar e pensar nisso como algo perfeitamente normal”.
Melissa Murray, professora de direito da Universidade de Nova York, cuja família é da Jamaica, disse no Twitter que a morte da rainha “aceleraria os debates sobre colonialismo, reparações e o futuro da Commonwealth”.
A rainha foi chefe de Estado de 32 países em seu reinado de 70 anos, mas, na época de sua morte, apenas 14, além do Reino Unido, permaneciam em seu poder.
Embora a decisão de Barbados de tornar-se uma república, em 2021, tenha sido a primeira mudança desse tipo em quase 30 anos, a ascensão de Charles III fez muitos de seus súditos, em toda a Commonwealth, questionarem se é a hora certa de instalar um governo menos remoto.
Gaston Browne (foto), primeiro-ministro de Antígua e Barbuda, disse, recentemente, que seu plano para um referendo não era um ato de hostilidade: “É o passo final para completar esse ciclo de independência, para garantir que somos verdadeiramente uma nação soberana.”
De fato, quando o príncipe William e sua esposa Kate Middleton visitaram o país em abril, Browne expôs sua esperança de seu país tornar-se uma república e pediu ao casal que usasse sua influência para alcançar “justiça reparatória” .
Mas, embora a promessa de Browne seja um marco, a exigência de uma maioria de dois terços em qualquer referendo é uma barreira significativa.
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A remoção da monarquia parece mais direta na Jamaica, onde uma maioria simples seria suficiente. As pesquisas indicam que este limite provavelmente seria atingido.
O primeiro-ministro da Jamaica, Andrew Holness (foto), disse a William e Kate, em 2021, que a Jamaica pretendia ser “um país independente, desenvolvido e próspero”.
Em São Vicente e Granadinas, onde, durante a visita dos, agora, príncipe e princesa de Gales, os manifestantes pediram reparações por tráfico de escravos, o primeiro-ministro, Ralph Gonsalves, propôs um referendo, mas disse que só poderia prosseguir com o apoio bipartidário.
As Bahamas, São Cristóvão e Nevis e Santa Lúcia exigem maioria simples, enquanto Granada exige uma votação de dois terços. Belize é o único país do Caribe onde Charles pode ser removido como rei apenas por uma votação parlamentar.
Países onde o legado do tráfico de escravos é menos saliente na política contemporânea mostraram menos apetite por mudanças. São eles Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Papua Nova Guiné, Ilhas Salomão e Tuvalu.
De fato, líderes em Papua Nova Guiné, Ilhas Salomão e Tuvalu reiteraram seu apoio à monarquia, nos últimos dias.
Embora o republicanismo seja popular na Austrália, Canadá e Nova Zelândia, em princípio, o assunto parece estar bem abaixo na agenda política.
Outros críticos concentram-se no racismo que garantem existir dentro da família real, particularmente relacionado a Meghan Markle.
Em 2021, Meghan Markle, disse, em entrevista a Oprah Winfrey, que “alguém ” da família real havia manifestado preocupação com a cor da pele de seu (ainda futuro) filho.
Pouco depois, um conjunto de documentos descobertos nos Arquivos Nacionais pelo The Guardian revelou que a rainha proibia “imigrantes ou estrangeiros de cor” de servir em cargos ou funções clericais na casa real, até pelo menos o final dos anos 1960. No entanto, poderiam trabalhar como empregados domésticos.
Além disso, um ano antes, pessoas no Reino Unido e em todos os lugares reclamaram que o Palácio de Buckingham não havia se pronunciado sobre o assassinato de George Floyd e sobre movimento global Black Lives Matter.
O palácio ofereceu apenas respostas mornas. Antes e durante o reinado de Elizabeth II, os jornalistas alegaram que a família real olhava para o outro lado e até permitia o racismo.
“É difícil imaginar a rainha mostrando apoio ao BLM e ao antirracismo em geral, quando em seus 69 anos no trono, ela não conseguiu abordar o racismo que inegavelmente existe na instituição da família real”, escreveu um jornalista para Insider em 2021.